sábado, 4 de fevereiro de 2012

MÃO BRANCA

O bar ficava na rua paralela a principal avenida da cidade. No sábado a noite era bastante movimentando, com carros parados em frente, incomodando quem dirigia. Tratava-se de uma casa antiga, estreita, acima do nível da rua, pintada de um verde musgo, descascando pelo desgaste natural. Era freqüentado por estudantes e gente descolada, maconheiros, putas e o pessoal GLS, e ele, conforme fiquei sabendo, costumava ir lá, normalmente no primeiro ou segundo sábado de cada mês, por volta da meia noite. Eu escolhi este lugar para sediar nosso encontro.

Na entrada havia um rapaz branco com argola no nariz e nas orelhas, segurando uma caixinha e vendendo tíquetes por cinco reais. A porta ficava no lado direito do muro baixo e espesso, como se construía antigamente. Um pessoal com pinta de estudante estava sentado sobre o muro, bebendo cerveja, fumando e observando outros que jogavam sinuca. Uns negros africanos estavam lá. Percebi que eram africanos porque eram mais negros que os negros locais. Eles tem vindo de países como Guiné Bissau e Moçambique para estudar aqui, e ao que parece se sentem mais a vontade que seus ancestrais. Paguei os cinco reais e entrei sem ser revistado. No que seria a sala da casa havia um banco no canto da parede, fumaça no ar e jovens conversando em grupos. Alguns me olharam rapidamente. Eram pessoas sem preconceito, então não davam bola pra um quarentão entrando num lugar onde a maioria das pessoas tinha na faixa de vinte. Era perfeito.

Passei pela segunda sala onde havia um DJ, pouca luz e algumas pessoas dançando. Fui até o balcão de madeira e a bebida que caía nele umedecia a superfície, deixando exalar um cheiro que me lembrava as antigas mercearias do interior. Pedi uísque. O garçom tatuado e careca serviu sem olhar pra mim. Tirei a mochila das costas e coloquei aos meus pés. Pus o celular sobre o balcão e vi as horas: 22:43. Cedo. Fiquei ansioso. Mais um uísque. Ao pegar no copo vi que minha mãos escorregavam, estavam suadas. Era minha primeira vez. Me preparei, planejei tudo milimetricamente mas, porra! Estava nervoso, muito nervoso. Seria hora de desistir? Será que eu deveria mesmo fazer aquilo da minha vida? Mais um uísque. Este deveria ser o último, conforme meus planos. Se ficasse bêbedo não conseguiria agir e perderia o melhor do momento, os detalhes. Eu não desfrutaria como planejei.

Engoli a última gota de uísque e estava alto. O movimento no bar crescera. Mais pessoas dançavam na saleta ao meu lado e mais ocupavam os banquinhos recostados nas paredes. A minha direita e esquerda pessoas pediam bebida, falavam uma coisa ou outra com o garçom e passavam roçando em mim pelo corredor onde estava o balcão e dava para o fundo da casa. Aquilo começava a me irritar. Tédio. Resolvi ir ao fundo da casa por curiosidade. Antes do fim do corredor, que dava pro quintal, havia dois quartos. Um estava trancado e outro tinha dois sofás onde um casal se agarrava. O banheiro estava no quintal que tinha o piso de cimento. Viam-se prédios. Olhei pro céu. Lindas estrelas cintilavam e o ar livre de fumaça de cigarro me fez bem. Por um instante esqueci o que vim fazer ali. Até que alguém cutucou minhas costas. Era uma menina pálida, com mechas vermelhas no cabelo curto, roupa preta e olhos imensamente depressivos.
-Licença, disse ela com ar de desprezo. Eu estava interrompendo a entrada do banheiro, que servia pra homens e mulheres. Uma pequena fila já tinha se formado atrás da menina de cabelo vermelho. Resolvi entrar no banheiro. A porta era velha e tinha frestas, mas o banheiro não fedia como imaginei. Ao fechar a porta me dei conta de que havia deixado a mochila ao pé do balcão e me desesperei. Empurrei a porta com força e quase atingi a mocinha branca, porque a porta abria pra fora.
-Ei, cuidado! Ela reclamou e outras pessoas da fila também reclamaram, mas não entendi o que disseram. Já na metade do corredor, avistei o pé do balcão e a mochila não estava lá. Meu sangue ferveu. O coração disparou. Não enxerguei mais nada ao redor.
-Você viu uma mochila preta que estava aqui no chão? Perguntei, com olhos acesos, ao garçom tatuado, que me olhou tentando disfarçar o espanto.
-Não, vi não. Disse ele recolhendo uns copos.
Uma angústia tomou conta de mim. O garçom tentou se livrar da responsabiliza:
-Nem vi que você tinha trazido mochila. Tem certeza que trouxe? Pode ter deixado em outro lugar...
-Eu severamente para o garçom e daria uma resposta severa. Foi quando ele surgiu na porta que dava acesso a sala onde tocava o DJ. Meu coração explodiu e uma descarga quente ardeu no meu estômago. Dois sujeitos o acompanhavam, sorrindo e falando alguma coisa. Ele tinha uma garrafa na mão e usava camiseta e jeans. Era a primeira vez que eu o via com essas roupas. Fingi que não tinha percebido sua entrada. Imediatamente o clima no bar mudou. Pessoas cochichavam e o garçom ficou visivelmente alterado. Ele e os caras que o acompanhavam se aproximaram do balcão. Eu não olhei. De repente ele estava bem do meu lado. Os outros dois ficaram no lado oposto. Eu continuei fingindo que nada estava acontecendo, mas ele falou:
-Opa, desculpa, licencinha aqui.
Nesse momento nossos olhos se encontraram. Ele estava meio suado, o cabelo bagunçado e tinha aquele generoso sorriso no rosto. Eu sorri discretamente e falei:
-Pois não...
Ele acendeu um cigarro, para minha surpresa, porque não sabia que fumava. Pediu um uísque. Os caras que o acompanhavam passaram a falar com ele e rir, como se eu não estivesse ali, o que me irritou e não sei se consegui não demonstrar o desprezo que sentia por eles ao olhá-los. Como nunca antes, senti vontade de levar a cabo meu plano, mas as coisas estavam difíceis. Havia esses imbecis com ele, e me disseram que costumava ir ali sozinho. Além do mais, sem a mochila, estava tudo fracassado. “Ladrões miseráveis”, pensei.
Foi quando apareceu um segundo garçom. Ele falou algo com o tatuado e veio apressado até mim:
-Você é o dono da mochila?
Eu mal pude falar.
-Sim, estava aqui...
-Eu guardei pra você, tava aí no chão, achei que alguém tinha esquecido...
-Obrigado.

Peguei a mochila e saí pelo corredor apressado. Felizmente não havia ninguém no banheiro nem na fila. Entrei e sentei no vaso. Abri nervosamente a mochila e conferi se estava tudinho lá. Estava. Foi aí que o nervosismo voltou. De certa forma, o sumiço da mochila me deixara aliviado. Agora, a responsabilidade estava de novo pesando sobre minhas costas.

A zarabatana

Quando eu era criança costumava caçar de baleadeira, que em algumas regiões é chamada de estilingue. Eu era muito bom nisso, ganhava muitas competições entre os meninos e sempre conseguia abater passarinhos e outros animais. Aquilo fazia eu me sentir poderoso. Armas são poder. Por isso, armas só devem estar nas mãos de pessoas com alto senso de honra e grande caráter. Sentado naquele banheiro, prestes a dar o grande passo da minha vida a fim de torná-la significativa, lembrei da minha infância e daqueles dotes infantis. Eu precisaria dele.

Peguei a zarabatana. Ela tinha o tamanho de um lápis. Zarabatanas, quanto menores, exigem mais habilidade de quem as manuseia. A minha zarabatana era mais grossa que um lápis e era de madeira. Por um instante, admirei a peça, que era muito bem feita, polida e incrivelmente leve. Da caixinha tirei o dardo e o embebi no veneno negro. Carreguei a arma e botei no bolso. Peguei o charuto e o acendi com dificuldade. Eu não fumo, droga!

Quando saí do banheiro havia umas cinco ou seis pessoas, não me recordo, na fila, com caras pouco amigáveis. Sem olhá-los fui fumando pelo corredor e vi que ele continuava lá, no balcão, agora um dos caras sentara no lugar antes ocupado por mim, e conversavam animadamente. Passei por trás e fui até o banco encostado na parede. Aquele era um banco em que as pessoas não ficavam muito tempo, conforme observara. Sentei com uma menina magra, que logo atendeu o celular e saiu. Fiquei fumando e olhando pra eles. Olhei pros lados, pra ver se o local era escuro o suficiente e se tinha alguém olhando pra mim. Estava num estado de euforia tão grande que mal podia lembrar onde me encontrava. “É agora”. Pensei. Havia treinado muito, era agora! Tirei o charuto da boca e no lugar botei a zarabatana. Respirei, prendi e pensei nos passarinhos que abatia na infância. O dardo voou cortando o ar poluído e entrou na nuca dele, por dentro dos cabelos espessos. Com a picada do dardo ele deixou o copo de uísque cair sobre si. Se isto não tivesse acontecido, ele teria conseguido levar a mão a nuca e descobrir o dardo, mas com o incidente do uísque perdeu uns dois segundos e quando tentou levar a mão a cabeça, o veneno já estava agindo. Seus nervos travaram, seus olhos pareciam querer saltar da órbita, toda a sua musculatura enrijeceu e ele caiu, duro como um tronco.
Em segundos começou a correria e pude agir com mais liberdade. Abri a mochila, guardei a zarabatana, peguei a luva e o pote de tinta. Rapidamente calcei a luva e embebi a mão na tinta. Guardei tudo na mochila e joguei-a nas costas. Em meio a correria me aproximei e me misturei aos curiosos. Quando o cara que o acompanhava o pegou nos braços e o carregou para fora, me aproximei, esperei o momento certo e, quando, ele passou pela área mais escura da sala, meti minha mão por baixo da camiseta e a pressionei contra suas costas. Ali, voltei a me misturar. Fingi amarrar o tênis e tirei a luva. Guardei e saí daquele ambiente fedido a cigarro.

A rua estava quase deserta e no céu as estrelas brilhavam ainda mais que antes. Me sentia um menino que matou um passarinho, de baleadeira. Eu estava poderoso.

No dia seguinte, um jornal de circulação nacional estampou: “Crime da Mão Branca; deputado é assassinado com dardo envenenado”. E seguia uma grande matéria onde se falava do mistério em torno do crime e da marca misteriosa: uma mão branca nas costas da vítima. Falava também das acusações de corrupção em que o deputado estava metido e outras coisas que tive preguiça de ler.